A Contabilidade de aquisição, ajustes e a falácia do “fluxo de caixa”.

Fonte: http://www.berkshirehathaway.com/letters/1986.html

Em artigos anteriores descremos o Fluxo de Caixa livre como a forma de sabermos aquilo que uma empresa poderia pagar aos seus acionistas sobre a forma de dividendos. Warren Buffett foi além, criou em sua carta aos acionistas de 1986 uma definição para explicar como ele vê a questão, o que ele mesmo define como o “lucros dos donos”. Aquilo que sobra depois de subtraído o que a companhia necessita gastar para manter o seu negócio em funcionamento

Por Warren E. Buffett

Tradução e adaptação: SER-

 

Uma pergunta primeiro: temos abaixo os Demonstrativos de Resultado de duas empresas em 1986. Qual dos dois negócios é mais atraente? 

 

 

 

Companhia V

 

Companhia N

 

 

(X 1000)

 

Receitas………………….

 

 

 

$677.240

 

 

 

$677.240

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Custo das Mercadorias Vendidas:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Custos históricos, sem depreciação............................

 

$341.170

 

 

 

$341.170

 

 

 

Custos não financeiros do Estoque………………....................

 

 

 

 

 

4.979

(1)

 

 

Depreciação de equipamentos e instalações…………....................

 

8.301

 

 

 

13.355

(2)

 

 

 

 

 

 

349.471

 

 

 

359.504

 

Lucro Bruto….........................

 

 

 

$327.769

 

 

 

$317.736

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Despesas de vendas e administrativas..........................

 

$260.286

 

 

 

$260.286

 

 

 

Amortização do “Goodwill” .........

 

______

 

 

 

____595

(3)

 

 

 

 

 

 

260.286

 

 

 

260.881

 

Lucros Operacionais...............

 

 

 

$ 67.483

 

 

 

$ 56.855

 

Outras Receitas Líquidas.........

 

 

 

4.135

 

 

 

4.135

 

Lucro antes dos Impostos........

 

 

 

$ 71.618

 

 

 

$ 60.990

 

Impostos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Impostos e Impostos diferidos……

 

$ 31.387

 

 

 

$ 31.387

 

 

 

Ajustes não financeiros durante o período ........

 

______

 

 

 

_____998

(4)

 

 

 

 

 

 

31.387

 

 

 

32.385

 

Lucro Líquido..........                                                 $40.231                    $28.605
                                                                            =====                     =====

(Os itens relacionados com os números (1) a (4) serão discutidos mais adiante).

Como você já deve ter percebido, as Companhias “V” e “N” são as mesmas - a Scott Fetzer. Na coluna “V” (de "velha") nós mostramos quais teriam sido os lucros da companhia em 1886 se nós não a tivéssemos adquirido; na Coluna"N" (de "nova") mostramos os lucros que foram considerados pela Berkshire.

Gostaríamos de enfatizar que as duas colunas têm os mesmos números econômicos, as mesmas receitas, salários, impostos, etc... E que ambas “companhias” geraram a mesma quantidade de caixa para os acionistas. A contabilidade é que foi diferente.

Digam então amigos filósofos, qual das duas colunas corresponde a realidade? Em qual dos números os administradores e investidores deveriam se basear?

Antes de abordarmos essas duas questões, vamos ver o que causou as diferenças entre as Colunas “V” e “N”. Vamos simplificar um pouco a abordagem em alguns aspectos, mas essas simplificações não acarretarão qualquer imprecisão nas análises e conclusões.

As diferenças entre as Colunas “V” e “N” ocorreram porquê nós pagamos pela Scott Fetzer um preço maior do que constava no seu patrimônio Líquido. Segundo a GAAP (Princípios Contábeis Geralmente Aceitos), essas diferenças – sejam elas prêmios ou descontos – devem ser contabilizadas como “reajuste no preço de compra”. No caso da Scott Fetzer, pagamos $315 milhões pelo seu Patrimônio Líquido, que constava nos livros por $172,4 milhões. Pagamos um prêmio extra de $142,6 milhões pela empresa.

Na contabilidade, o primeiro passo é ajustar o valor de qualquer prêmio pago em cima dos Ativos Circulantes, atualizando seu valor. Na prática, esses ajustes não afetam o Contas a Receber, já que são normalmente contabilizados pelo seu valor de Mercado, mas afeta normalmente os Estoques. Como havia uma reserva de $22,9 milhões para o método LIFO (NT- Last-in, First-Out – ou UEPS) e outras manobras contábeis, o Estoque da Scott Fetzer era contabilizado com um desconto de $37,3 milhões sobre o seu valor. Fizemos então nossa primeira manobra contábil, empregando $37,3 milhões dos 142,6 milhões pagos de prêmio para aumentarmos o valor dos Estoques.

Assumindo que não exista nada mais a ajustar nos Ativos Circulantes, o próximo passo seria ajustar os Ativos Fixos para o valor corrente. No nosso caso, estes ajustes também requereriam algumas acrobacias contábeis referentes a impostos diferidos. Como estamos tratando o assunto simplificadamente, vou pular esses detalhes indo direto ao resultado: foram adicionados $68,0 milhões aos Ativos Fixos e eliminados $13,0 milhões de impostos diferidos. Depois de fazer esse ajuste de $81,0 milhões, ainda restam $24,3 milhões do prêmio para distribuir.

Duas coisas ainda são necessárias: o ajuste dos Ativos Intangíveis, excetuando-se o Goodwill, para valores de Mercado, e o ajuste dos Passivos para valores de Mercado, que normalmente só afetam as dívidas de longo-prazo e as dívidas relativas a previdência ainda não cobertas. No caso da Scott Fetzer, nenhum deles foi necessário.

Depois de ajustar os preços de todos os Ativos e Passivos, o ajuste contábil que ainda restaria fazer seria ajustar o prêmio residual ao Goodwill (tecnicamente conhecido como "excesso de custo sobre o preço justo de aquisição do Patrimônio Líquido”). Este valor residual consistia de $24,3 milhões. Assim, o Balanço patrimonial da Scott Fetzer, antes da aquisição foi consolidado na Coluna “V” e transformado, depois da aquisição, no Balanço Patrimonial da Coluna “N”. Como podemos ver, ambos Balanços Patrimoniais possuem os mesmos Ativos e Passivos – mas, alguns números são bem diferentes.

 

Companhia V

Companhia  N

 

(X 1000)

Ativos

 

 

Caixa e Disponibilidades………………………...

$ 3.593

$ 3.593

Contas a Receber, Líquidas……………………..

90.919

90.919

Estoques…………………………………………

77.489

114.764

Outros…………………………………………….

5.954

5.954

Total do Ativo Circulante ………………………..

177.955

215.230

Propriedades, Plantas e Equipamentos, Líquidos….

80.967

148.960

Investimentos antecipados em subsidiarias não consolidadas e “Joint Ventures”…………………….........................

93.589

93.589

Outros Ativos, incluindo o Goodwill…………

9.836

34.210

 

$362.347

$491.989

Passivos

 

 

Parcela das dívidas de Longo Prazo que vencem no exercício .........................

$ 4.650

$ 4.650

Contas a Pagar…………………………………....

39.003

39.003

Passivo Diferido…………………………….......

84.939

84.939

Total dos Passivos Circulantes……………..

128.592

128.592

Dívidas de Longo-Prazo………...............

34.669

34.669

Impostos Diferidos……………………………..

17.052

4.075

Outros créditos diferidos ………………………

9.657

9.657

Total do Passivo……………………………………

189.970

176.993

Patrimônio Líquido……………………………...

172.377

314.996

                                                                          $362.347             $491.989
                                                                          ======             ======

 

Os números maiores encontrados no Balanço Patrimonial da Coluna “N” acarretaram em lucros menores no Demonstrativo de Resultado da Coluna “N”, apresentados acima. Isso é o resultado do aumento contábil dos Ativos fixos e do fato de que alguns desses aumentos precisam ser depreciados ou amortizados. Quanto maior o valor dos Ativos, maior será a redução nos lucros causada pela depreciação e amortização.  As reduções nos lucros da companhia causados pelo aumento dos Ativos foram numerados no Demonstrativo de Resultados mostrado anteriormente:

  1. $4.979 relativos a custos não financeiros do Estoque, principalmente devido a reduções que a Scott Fetzer fez em seus estoques durante o ano de 1986; deduções desse tipo tenderão a ser muito pequenas ou inexistentes nos próximos anos.
  1. $5.054 referentes ao aumento da depreciação atribuído à adição contábil efetuada nos Ativos fixos. Uma redução no lucro desse patamar deverá ser efetuada, anualmente, por mais 12 anos.
  1. $595 relativos a amortização do Goodwill; essa redução deverá ser feita anualmente por mais 39 anos de um valor uma pouco mais alto devido a nossa aquisição ter sido efetuada em 6 de Janeiro e a despesa ter sido efetuada em cima de apenas 98% do ano fiscal.
  1. $998 relativos a acrobacias financeiras diferidas que estão além da minha capacidade de síntese para uma explicação sucinta (talvez, nem com mais tempo eu conseguisse); uma redução de aproximadamente o mesmo valor provavelmente irá ocorrer anualmente, durante os próximos 12 anos.

É importante entendermos que nenhum desses custos contábeis recém-criados, totalizando $11,6 milhões são dedutíveis no imposto de renda. A “nova” Scott Fetzer paga o mesmo imposto de renda que a “antiga” Scott Fetzer teria pago, embora os lucros das duas entidades sejam completamente diferentes. E isso também acontecerá também com os lucros operacionais futuros. Caso a Scott Fetzer venha a vender um de seus negócios futuramente, as conseqüências fiscais para a “velha” e a “nova” companhia devem ser bem diferentes.

No final de 1986, a diferença do Patrimônio Líquido entre a “Nova” e a "Velha” Scott Fetzer foi reduzido de $142,6 milhões para $131 milhões por intermédio dos $11,6 milhões extras que foram descarregados nos lucros da nova entidade. A medida que os anos forem passando, novos carregamentos serão efetuados sobre os lucros que farão com que grande parte do prêmio pago venha a desaparecer, fazendo com que os dois Balanços Patrimoniais venham a convergir. Mesmo assim, a maior parte das propriedades e dos maiores valores do Estoque que foram consolidados nesse novo Balanço permanecerão os mesmos, a não ser que essas propriedades sejam vendidas ou que  os níveis de estoque venham a baixar.

* * *

Qual é o significado para os proprietários? O que os acionistas da Berkshire compraram em 1986, um negócio que lucrava $40,2 milhões, ou outro que estava lucrando $28,6 milhões? Essas novas despesas de $11,6 milhões constituem um custo econômico para nós? Os investidores deveriam pagar mais pela ação da Empresa “V”, ou pela empresa “N”? Se um negócio vale um determinado múltiplo dos seus lucros, será que a Scott Fetzer valia bem mais no dia anterior a aquisição do que no dia seguinte? Se raciocinarmos em cima dessas questões, ganharemos alguma compreensão do que poderia ser chamado de "lucro dos donos." Eles são constituídos por (a) Lucro Líquido, mais (b) depreciação, exaustão, amortização, e outras despesas não financeiras como os itens (1) e (4) da Companhia “N”, menos (c) a média anual despesas de capital para recompor plantas e equipamentos, etc... de forma que a empresa consiga manter sua capacidade competitiva e volume de produção. (Se o negócio necessitar um aumento de capital de giro para manter sua competitividade e volume de produção, esse incremento também deverá ser incluído em (c). Embora, normalmente, o negócio que siga o sistema LIFO não requeira mais Capital de Giro, se o volume de produção não se alterar).

A equação do Lucro dos donos não retrata precisamente os números fornecidos pelo GAAP, porquê “C” é uma estima - por muitas vezes, difícil de se fazer - tanto para investidores que compram ações como para administradores que compram todo o negócio. Nós concordamos com a observação de Keynes: “Eu prefiro estar mais ou menos certo do que precisamente errado”.

Com o estudo que fizemos concluímos que os "lucro dos donos" da companhia “V” e da a companhia “N” que são iguais, o que significa que a as avaliações também são iguais, como você já deve ter percebido. Isso ocorreu porquê a soma de (a) com (b) é a mesma tanto na Coluna “V” como na “N”, e porquê (c) é necessariamente o mesmo em ambos casos.

Como donos e administradores do negócio, quanto eu e Charlie avaliamos que seja o valor correto dos “lucros dos donos” da Scott Fetzer? Nas condições reinantes, acreditamos que (c) seja bem mais próximo do número da “Velha” companhia (b) de $8,3 milhões; e muito abaixo do número (b) da “Nova” companhia de $19,9 milhões. Por isso, consideramos que o lucro dos donos é muito mais próximo dos lucros indicados na Coluna “V” do que dos indicados na Coluna “N”. Em outras palavras, consideramos que os lucros dos donos da Scott Fetzer são consideravelmente maiores que os números que publicamos.

Isso é, obviamente, uma ótima conclusão. Normalmente, os cálculos desse tipo não nos brindam com notícias tão boas. A maioria dos administradores irá dizer que no longo-prazo eles precisam gastar nos seus negócios alguma coisa a mais que (b) somente para manter sua posição competitiva e o volume de produção. Quando esse imperativo existe – isso é, quando (b) ultrapassa (c) - Os lucros GAAP superestimam os lucros dos donos. Normalmente essa superestima é grande. O setor de petróleo foi nos últimos anos um exemplo clássico desse fenômeno. Se as petrolíferas tivessem gastado apenas (b) a cada ano iam acabar deixando de existir.

Os pontos citados acima mostram como é absurdo o “fluxo de caixa” informado nos demonstrativos de Wall Street. Eles incluem (a) mais (b) – mas, não subtraem (c). As maiorias dos folders de Bancos de investimento mostram números desse tipo. Isso significa considerar que essas empresas são a versão contemporânea das pirâmides do Egito – são o estado-da-arte, nunca necessitarão ser substituídas, aperfeiçoadas ou reparadas. Se todas as empresas americanas fossem colocadas a venda simultaneamente por nossos bancos de investimento – que tentam nos convencer daquilo que escrevem nos folders – As projeções do governo americano com gastos industriais seriam reduzidas em 90%. O "Fluxo de caixa", certamente pode servir como atalho útil para descrever alguns empreendimentos imobiliários ou outro tipo de empresa que fazem um grande investimento inicial e recebem pequenos fluxos de caixa com o tempo. Uma companhia em que o principal ativo seja uma ponte ou um campo de gás com perspectivas de longa duração, talvez seja um exemplo. Mas "fluxo de caixa" não tem qualquer sentido em negócios como varejo, companhias extratoras e utilidades porquê para elas, o (c) é sempre significante. Negócios desse tipo podem em determinado ano postergar suas despesas de capital. Mas num horizonte de cinco a dez anos, deverão obrigatoriamente fazer investimentos, ou estarão fadadas ao insucesso.

Por quê será então que os números do “fluxo de caixa” são tão populares hoje em dia? Nessa resposta nós externamos todo nosso cinismo: acreditamos que sejam resultado da atuação dos “marketeiros” das empresas e do mercado acionário, na tentativa de justificar o injustificável (e, como conseqüência, vender o invendável). Quando (a) – que são os lucros GAAP – parecem por si só injustificáveis como garantia para um junk bond da empresa ou para justificar um preço estupidamente alto para ações, será extremamente conveniente ao vendedor basear-se em (a) + (b). Mas, você não deve somar (b) sem subtrair (c): da mesma forma que os dentistas pedem para você ignorar seus dentes quando sai do consultório, o mesmo não é válido para (c). A companhia, ou investidor que acredita que a garantia da dívida ou da avaliação de Patrimônio Líquido de uma empresa pode ser medida somando-se (a) mais (b) e ignorando (c), estará destinado a encontrar problemas pela frente.

* * *

Resumindo: em ambos casos da Scott Fetzer e de diversos outros negócios de nossa carteira, acreditamos que (b) pela ótica de custos históricos - ex., excluindo tanto a amortização como os ajustes do preço de aquisição - é quase do mesmo valor de (c). (Os dois itens não são idênticos. Por exemplo, na See’s nós contabilizamos gastos anuais que ultrapassam a depreciação de $500.000 a $1 milhão, apenas para manter sua capacidade competitiva). Por essa razão que mostramos a amortização e outros itens ajustados separadamente, na tabela da página 8 sendo também a razão para descrevermos os lucros de negócios individualmente como uma aproximação muito maior do “lucros dos donos” do que os números informados pelo GAAP.

Questionar os números do GAAP pode parecer um pouco desrespeitoso para algumas pessoas. Nós não estamos pagando aos contadores para nos dizerem a “verdade” sobre o negócio. O trabalho dos contadores é registrar e não avaliar. A avaliação é o trabalho de investidores e administradores.

A contabilidade é a linguagem do negócio sendo um enorme auxílio para qualquer um efetuando avaliação e acompanhamento de um negócio. Eu e Charlie estaríamos perdidos sem esses números: eles são normalmente o ponto de partida para analisarmos nosso próprio negócio e o dos outros. Administradores e proprietários devem sempre se lembrar que a contabilidade é uma ferramenta para auxiliar no raciocínio sobre o negócio, mas nunca um substituto.

 

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